terça-feira, 24 de março de 2009

No princípio...

Andava às voltas na biblioteca e, por curiosidade, decidi procurar nos "Ensinamentos de João Paulo II" as palavras proferidas pelo Papa no dia 27 de Janeiro de 1990, o dia em que nasci. João Paulo II encontrava-se, então, numa viagem apostólica à Guiné-Bissau. Lá estava o discurso que, em baixo, transcrevo... Profundamente tocado pela ternura de Deus, descobri, hoje, as palavras que quis dizer-me no início do caminho, na certeza de as ter ouvido inúmeras vezes ao longo destes 19 anos:


«São outros tantos convites, que o Senhor vos dirige; e, da vossa parte, existe a responsabilidade de dar resposta a cada um deles. Uma resposta concreta, efectiva, generosa; aberta às exigências e às necessidades urgentes da população da vossa terra; e aberta aos instantes apelos de tantas almas, que esperam pela verdade de Cristo ou se interrogam sobre a mensagem do Evangelho.
Na realidade, ser sacerdote, ser missionário significa ter escutado, como Pedro, o convite a deixar tudo e a seguir Cristo, confiando unicamente na sua promessa tranquilizadora: “ Não tenhas medo, farei de ti pescador de homens ”.
Na oração e na meditação, durante estes anos em que vos preparais para o futuro, para servirdes na difusão do Reino de Deus, tende sempre presente esse diálogo entre Pedro e Jesus. Que haja no vosso íntimo o desejo de falar com Cristo sobre a missão que vos espera; falar-Lhe da escolha que estais a fazer e para a qual vos preparais, em atitude de quem confia na graça do Senhor; falar-Lhe das coisas que Ele nos indicou no “ Pai-Nosso ” e no Cenáculo, durante a última Ceia. Tende un coração aberto para fazerdes o dom da vossa vida a essa missão! E procedei com humildade, bem conscientes de que o serviço sacerdotal é deveras exigente e que a entrega aos outros levar-vos-á a ter de enfrentar situações complexas e difíceis.
Vivei a união com Cristo, com fé ardente, na oração, para poderdes sempre encontrar n’Ele a força necessária para perseverar e vos tornardes, como Ele, “ homens para os outros ”. Ele continua a convidar e a propor a cada um de vós: “ Farei de ti pescador de homens ”.
»

quinta-feira, 19 de março de 2009

"Vou seduzir-te até ao deserto e falar-te ao coração..."


Resta apenas o silêncio e a paz do coração... Chegado do encontro de intimidade conTigo é-me impossível silenciar o coração, irrequieto no desejo de continuar a sussurrar o meu pequeno "amo-Te". Hoje não resisto, Senhor. Como poderia eu não escutar a voz d'Aquele que me cativou com a sua misericórdia e amor eternos? E deixo-me ir até ao deserto, guiado pela Tua mão, onde caem as máscaras e as aparências, onde não há lugar para a banalidade, onde quebras as minhas ilusões, onde a Verdade prevalece... Aqui onde só restamos nós, face a face, os meus pequenos nadas e a deslumbrante sarça que arde sem se consumir, que diz, vezes sem conta, "Eu sou Aquele que amo". Esta noite, Tu sabe-lo, desejei de todo o coração ser aquela mulher que todos sabiam pecadora, aquela que, profundamente seduzida por Ti, não teve medo de se prostrar aos Teus pés e beijá-los, na humildade das suas lágrimas, aquela que, antecipando o dia em que, por um pouco, repousarias na paz do sepulcro, Te ungiu com perfume, a Ti o Ungido do Pai. Só depois percebi, ó Deus apaixonado, que enquanto me perdia nestes sonhos de criança segura no colo do Pai, eras Tu que te ajoelhavas diante de mim, saravas as minhas feridas com as lágrimas da Tua compaixão e me ungias com o Espírito que, na derradeira hora do amor até ao fim, entregaste àqueles por quem Te davas. Pode um coração pequenino e frágil resistir ao seu Amado, que se dá todo? No deserto, onde "sei que a fonte mana e corre, embora seja noite", diante do Esposo que se esvazia para que eu viva, que não teme ajoelhar-se para perdoar, coloco-me todo em Ti e, enraizado na esperança, caminho para a Jerusalém do Alto, onde poderás desposar-me na fidelidade, na misericórdia e no amor... Uma vez mais, não resisto olhar-Te nos olhos, para dizer "amo-Te"...

sábado, 14 de março de 2009

“Um Santo nunca é para imitar, é para inspirar. Logo há que destronar a auréola que o envolve para agarrar a santidade.”
Pe. Vasco Pinto Magalhães, sj


Partilho convosco um texto que escrevi à uns tempos, como introdução a um trabalho sobre um dos Santos da Igreja. Neste tempo quaresmal é bom deixarmo-nos interpelar pela santidade daqueles que chegaram perto de Deus, como ponto de partida para o nosso "regresso a Casa"...

Há nos Santos qualquer coisa que atrai o comum dos mortais. Precisamos constantemente de referências, de modelos que nos indiquem a meta, de super-homens que nos façam acreditar que somos capazes de grandeza. É frequente tomarmos os Santos por semi-deuses, cuja grandeza reside naquilo que podem fazer por nós, naquilo que de bom nos podem obter. No entanto, a Igreja diz-nos que o valor da santidade não reside aí, antes se identifica na verdadeira comunhão com Deus, aquele que é verdadeiramente Santo, no caminho que tantos homens e mulheres percorreram antes de nós, actualizando as palavras e os gestos de Jesus de Nazaré, Filho de Deus e Salvador do Homem. Ser santo é antes de mais ser companheiro de Jesus, aceitar comprometer-se na relação pessoal com Ele, na disponibilidade para acolher o Seu Espírito, na certeza de se ser amado por Deus. E longe de recusar o valor do Homem e da sua condição, a santidade constrói-se com aquilo que somos, com os dons e as fragilidades que nos são próprios, e no ir ao encontro de Deus, procurando-O no mundo e naqueles que nele caminham. Ser santo é ter a capacidade de abrir-se ao Ser, que ultrapassa o que somos, é procurar, a cada momento, tocar a Luz que dissipa toda a escuridão. No caminho da Cruz, que se abre na Ressurreição, na Vida plena de Deus, o santo aceita a vontade d’Este e torna-se lugar da Sua presença e de encontro d’Ele com os homens e as mulheres do seu tempo. De olhos fixos em Cristo Ressuscitado, que lhe deixa a promessa da Vida, e simultaneamente no momento presente em que caminha, o santo intui os sinais dos tempos e faz-se servo daqueles que, como irmãos, lhe foram confiados. E neste peregrinar, lado a lado com Jesus, de regresso a Casa, o homem tocado e comprometido com Deus, deixa feixes de santidade, abre caminhos de encontro e comunhão com Ele, prontos a serem percorridos por aqueles que vierem mais tarde.


Porque não começar hoje?

quarta-feira, 11 de março de 2009

"Dilatai o vosso coração"...

Oiço a voz do Senhor, que fala por Paulo, a pedir-me mais...

"A nossa boca tem-se aberto para vós, ó coríntios; dilatou-se o nosso coração. Não é estreito o espaço que tendes em nós; o vosso íntimo é que se estreitou. Pagai-nos com a mesma moeda - como a filhos vos falo: dilatai, também vós, o vosso coração."
2 Cor 6, 11-13

sexta-feira, 6 de março de 2009

"Nas fontes da salvação saciai-vos na alegria"


Em dia de perdão e reconciliação, num tempo particularmente propício à "releitura de vida", quero partilhar convosco uma oração que escrevi num destes dias, num daqueles momentos em que sentimos a presença de Deus queimar no coração...

Jesus, Palavra do Pai, tem misericórdia de mim...
Caudal das águas vivas,
que brotas do Coração de Deus,
sacia-me,
emerge-me em Ti,
derrama-Te na profundidade do ser que me anima.

Toma o Teu lugar no espaço mais interior de mim,
o lugar que apenas Tu podes preencher,
mas que não pode conter a Tua Totalidade;
aí, irradiando a paz da Tua presença,
irrompe uma nascente viva e torrencial,
uma nascente que torne dom
tudo o que as suas águas tocarem.

Que corra do meu coração
a torrente da caridade,
levando-me todo,
como dádiva, com ela;
que esta torrente,
nascida do Coração do Pai,
entregue pelo Teu "Coração Rasgado",
e permeada, na essência, pelo Espírito,
se derrame sobre todos os que vêm até mim...

Profundamente trespassado pela força vital,
que vem de Ti para mim,
sublimado pelo abismo do Amor,
que anima a Trindade,
consagrado e enviado aos homens,
pelo Espírito, que faz todas as coisas novas,
eu serei, em Ti,
o sinal daquela Unidade,
pela qual, és Tudo em todos.
Amen.

domingo, 1 de março de 2009

"Voltai-vos para Deus"...

"Deus não se cansa de retomar o caminho connosco. Podemos acreditar que uma comunhão com ele é possível e assim nunca nos cansamos de, também nós, retomar sempre de novo o combate. Não perseveramos para nos apresentarmos diante de Deus com o nosso melhor aspecto. Não, aceitamos avançar como pobres do Evangelho, que se confiam à misericórdia de Deus."

Irmão Alois de Taizé
Quaresma. Vêm-me à memória cinco imagens: a cruz que trago comigo, uma conversa no carro, um menino a sorrir, uma mulher deitada na rua e um livro do Abbé Pierre...

1. A Cruz. É interessante como já recebi duas cruzes daquelas mãos; esta foi oferecida depois de uma missa fora de horas e de uma conversa (quase um monólogo) sobre a minha vida e a minha vocação, com jovens universitários, em missão. Convidaram-me para ir falar sobre a presença de Cristo no meu caminho e a minha resposta à sua entrega de amor. Fez-me bem fazer memória dos inúmeros acontecimentos que se tornaram "sacramentos" de Deus em mim; acima de tudo, fez-me bem redescobrir a simplicidade do testemunho, aprendida no olhar dos que me escutavam e na intimidade da celebração eucarística.

2. A conversa. Era a última noite em casa, depois do Carnaval, e, numa conversa a três percebi como andava com um défice de autenticidade na minha vida. Quando o objectivo era resolver o défice de presença junto de duas pessoas essenciais para mim, elas lembraram-me como é fundamental ser fiel a mim mesmo e Àquele que me chamou, mesmo que isso implique ser diferente.

3. O menino. Diziam-me elas que imensas pessoas ficavam surpreendidas com aquela imagem de Jesus menino a sorrir. Eram três mulheres, irmãzinhas de Jesus, congregação feminina que segue a espiritualidade de Charles de Foucauld, e cujo carisma é serem presença de Cristo e da sua Igreja, no meio da realidade do homem, de forma pobre e humilde. Ouvimo-las falar do conceito de deserto, na linguagem espiritual, como forma de viver a Quaresma. Uma vez mais, ouvi-O chamar-me a atenção para a "irradiação eucarística" e para a "unidade do Cristo total", conceitos que me tocam de forma especial...

4. A mulher. A princípio nem reparei nela; depois, através de alguns colegas que se aproximaram dela, dirigi-me também até ao lugar onde ela estava. Disse-me o seu nome e explicou-me que estava a dormir na rua como forma de protesto, apesar de ser uma mulher doente, por que, em vão, tinha esperado demasiado tempo por uma indeminização que nunca chegou. Tentámos demovê-la do protesto, falámos da falta de dignidade da situação, não serviu de muito. Chocou-me a forma como todos desviavam o olhar daquela mulher; começava, então, a caminhada que dava início à Eucarístia, com a Liturgia da Palavra durante a subida do monte. Interroguei-me se as pessoas, que entusiasmadas caminhavam escutando a Palavra, não terão deixado ficar Cristo, sofrendo naquela mulher, no princípio do caminho.

5. O livro. Vindo directamente do Coração de Deus, de um mendigo que montou lá a sua tenda, recebi um livro do Abbé Pierre, cujo título é "Obrigado Senhor". De vez em quando, vou passando os olhos por aquelas páginas e, num destes dias, descobri a "desilusão entusiasta"; percebi como Deus nos desilude, nos limpa da ilusão que são as imagens que vamos criando d'Ele, de nós próprios e dos outros. Deixo-vos uma frase especial: "Sabei de vez em quando apagar tudo/ para que as estrelas voltem".

É por aqui que vai passar a minha quaresma. Deixando que Ele destrua as ilusões, para viver uma autênticidade humilde; acompanhando-O ao deserto, para me deixar inundar de um silêncio orante e operante; descobrindo-O no outro, para aprender d'Ele o serviço à comunhão e à verdade. Tudo isto de forma fiel e confiante. É apagando as luzes artificiais que fui colocando em mim, luzes que tantas vezes me incandeiam, que redescobrirei a beleza da luz das Suas estrelas.